quinta-feira, 14 de abril de 2016

Metafísica de Anaximandro - MD - Momento 94

As menções de Anaximandro

No hilozoismo da cultura grega antiga todas as coisas possuem uma génese, uma vida e a sua aniquilação; em que o elemento vital, é um elemento anímico, uma alma, não necessariamente um espírito (alma inteligente).
Anaximandro menciona a geração (nascimento) e a corrupção (morte), aplicados a todas as coisas. Portanto, ele participa desse hilozoismo. Acrescenta-lhes, no entanto, a sua tese:
-Há um elemento, o apeiron, do qual todas as coisas surgem, auferem a sua vitalidade, nele desaparecem e retornam quando perdem completamente essa vitalidade. Posição que é próxima de Tales.

Também menciona uma regra ou ordem no surgir e desaparecer das coisas.
Não aponta para um caos, mas para um Kósmos, segundo o seguinte:
Um dos sentidos básicos desta palavra grega é “ordem”. É de notar que é comum a toda a civilização grega que a realidade é um só kósmos enquanto princípio ordenador anímico que a mantém unida e ligada nas suas partes. Ora, tal era necessário desde que a noção de ligação e de união não fossem afastadas uma da outra. No entanto, isto remete-nos para as ideias de destino, de onde sobressaem as ideias de:
- Moira - entidade transcendente que amarraria os nós das existências temporais dos seres, e de
- Anake  - personificação divina da Necessidade,  com um papel semelhante.
Quanto à sua ideia de que um ser estar fadado ao aniquilamento, isto é, o ser surge para perecer, aponta para uma concepção trágica da existência, concepção constante nas epopeias de Homero, nas Cosmogonias de Hesíodo, e na Tragédia ática (Esquilo, Sófocles, Eurípedes). É mais uma noção ligada à noção de Destino. Destino, enquanto sentido transcendente que rege e determina todas as coisas, uma espécie de julgamento universal oculto, o qual tem subjacente um princípio julgador oculto, o que não deixa de ser mais um elemento anímico.
O notado anteriormente torna-se mais consistente se for tomado o tema da aniquilação como expiação. Morrer, perecer, deixar de ser, são punições infligidas ao ente que surge arbitrariamente da fonte inicial, o que é injusto, e cuja existência é violenta. O que leva a vincular-se à tradição Orfismo aplicado à alma humana, enquanto potência fatalista, em que a existência é uma sina, todo o agir ou ser tem um carácter negativo e a morte não passa de uma expiação ou redenção. Ora, Anaximandro vislumbra essa potência em todos os entes. Ele transpõe estas ideias, generaliza o princípio órfico porque admite a presença universal do elemento anímico.

Anaximandro menciona também uma ordem do tempo
O inscreve na concepção do tempo cíclico, circular, do eterno retorno dos seres, uma versão em escala cósmica da metempsicose  ou o retorno à existência (para alguns, entendida mais estritamente como reencarnação). O tempo só retorna porque há algo depois do fim, porque o princípio se reitera, se repropõe, se manifesta outra vez.


Metafísica de Anaximandro - MD - Momento 93

A geração não vem de um elemento em mudança, mas a partir do ilimitado, através da separação de contrários devido ao eterno movimento.
Todos os ciclos em sequência de criação, evolução e destruição são fenómenos naturais, que ocorrem a partir do ponto em que a matéria abandona e se separa do apeiron. Anaximandro não dá à criação o carácter material que o seu mestre defendia.
Como o apeiron é infinito e qualquer um dos elementos considerados não o é, tal permite ao apeiron deter o poder de gerar e corromper todas as outras coisas. Dado o seu movimento eterno, o tempo é tal que a geração, a existência e a destruição num universo são limitadas. Assim, necessariamente, o que tem geração ou início tem também fim, o término da sua corrupção. E, a mudança dos seres não pode em si e por si mesmos se determinar.
Durante a luta os contrários vão perdendo o poder que detinham, ou seja vão perdendo a sua vitalidade. E, quando já não possuem qualquer poder cessa a luta entre eles, sendo reabsorvidos no apeiron, ou seja nele desaparecem ou a ele retornam.

A Injustiça
O apeiron é a Lei do Destino e da Justiça:
Tudo o que nasce, um dia vai morrer. Tudo o que é quente, um dia vai esfriar. Tudo o que é grande, pode ser dividido em pedaços mais pequenos. O fogo pode ser combatido com água, e como resultado, fogo e água deixam de existir. Tudo o que existe, somente existe em função de uma emancipação do ser eterno e portanto as coisas ao se separarem deste, são dignas de castigo.
Todo o dualismo entre opostos é uma forma de luta, e como tal, de injustiça. 
A injustiça consiste na predominância de um contrário sobre o outro, no próprio facto de serem contrários, e na alternância dos contrários.
A Justiça é a pacificação dos opostos no Infinito pela sua reintegração neste.
Como
-O mundo nasce da cisão de contrários, de onde se identifica a primeira injustiça, a qual deve ser expiada com a morte ou fim do próprio mundo, que depois renasce, infinitamente, segundo determinados ciclos de tempo.
-O nascimento de cada contrário implica imediatamente a sua contraposição ao outro contrário.
Por essas duas razões, todo o nascimento é uma injustiça, a ser expiada com o futuro aniquilamento.
Assim, sendo, todo o ser finito, por ser limitado, é injusto.     
Há dupla injustiça e, consequentemente, dupla necessidade de ex­piação, visto que:
1 - O nascimento do mundo dá-se através da cisão da unidade do princípio em opostos;
2 – Após a cisão, cada um dos opostos tenta usurpar, com ódio pelo outro, a condição de único sobrevivente e dominador. Uma usurpação, ao mesmo tempo, do lugar e dos direitos do imortal e indestrutível.
Pode-se dizer que as coisas criadas cometem injustiças; é necessário, tendo em conta as injustiças de umas sobre as outras, umas pagarem (penalização) e outras receberem (recompensa), de acordo com a ordenação do tempo.  

Em resumo:
1 – Na geração, o apeiron é o princípio ou o elemento de onde as coisas surgem.
Na corrupção, é no apeiron as coisas desaparecem ou se aniquilam;
O apeiron é Lei da Necessidade:
2 - A geração e corrupção dão-se junto a este princípio e são regidas por ele,  segundo a Lei da Necessidade.
O Princípio é Lei do Destino e da Justiça:
3 - Os diversos seres participam da aniquilação ou corrupção uns dos outros, havendo concessão de justiça e deferência. Ou seja, aniquilar um ente é fazer Justiça, donde se infere que todo surgir de algo, todo escapar da fonte primeira, é uma “injustiça”, uma violência;
4 - O modo como cada ente faz justiça ao outro através da injustiça: cada coisa ao surgir, aniquila violentamente uma outra que lhe precedia, “vingando”, por sua vez, o que aquela fizera com uma outra a qual aniquilou;

5 - Esta “expiação” universal de todas as coisas, não se dá simultaneamente, ao mesmo tempo, mas segundo a ordem do tempo.

Metafísica de Anaximandro - MD - Momento 92

Retemos que o apeiron é a realidade primordial e final de todas as coisas e, consequentemente, contem toda a natureza do divino em si próprio.
* Matéria divina
Como está acima do vir-a-ser garante a eternidade e o curso do vir-a-ser.

Em termos de matéria, é uma matéria divina, infinita, ilimitada, indefinida, indeterminada, da qual não se tem experiência, em movimento perpéctuo, sustentada por um equilíbrio de poderes e circundante. Em relação aos seres, é a matéria primordial, geradora, potenciadora, corruptora e que acolhe os seres após a sua perda de total de vitalidade. 

Geração e Corrupção

Como é que o apeiron gera as coisas determinadas e as manifestações no plano dos fenómenos

Concebe o apeiron como fundamento de todas as coisas, uma matéria originária da qual todas as outras coisas se cindem, um todo metafísico que contém em si todos os contrários. Se assim é, o apeiron tem que ser anterior a todos os contrários, à “separação” desses contrários e a todas as determinações.
Segundo a doxografia terá afirmado que em virtude do movimento eterno, a origem das coisas a partir do apeiron é explicada através da separação ou cisão dos contrários.
No apeiron se estabelece uma luta dualista, eterna e cíclica entre os contrários. De tal modo que os contrários como que se excluem o tempo todo e se revezam no tempo, daí não se manifestarem, o que impossibilita a sua determinação. Por influência do já referido movimento eterno, os contrários são separados dele, de molde a formar um Kósmo (universo). Passam, então, a existir os contrários, enquanto pares com propriedades opostas e determinadas, em cada coisa da natureza e nas que proliferam no universo.
A manifestação dos contrários, ou seja, a possibilidade de serem notados na natureza, só o é desde que se dá a separação ou cisão dos contrários. E, é através dos contrários existentes nas coisas naturais e que proliferam no universo que o apeiron se manifesta no mundo empírico. 
A explicação para o que se verifica na natureza reside na referida luta que os contrários estabelecem entre si. Nessa luta
-A morte de um oposto é a vida de outro (ao calor do verão sucede o frio do inverno).
-Como o apeiron é ilimitado, numa mesma coisa, um dos elementos do par de opostos não pode existir, enquanto existir o seu contrário. Como se verifica existe uma ordem nesta determinação. Portanto, o apeiron limita e determina as coisas finitas.  
-Cada vez que um contrário prevalece, ie, quando se verifica o triunfo de um oposto à custa do outro, gere-se um desequilíbrio ou uma injustiça, o qual exige uma reparação no tempo através da vitória do outro oposto e assim sucessivamente. 
O tempo é o juiz, na seguinte medida:
1-Mede e julga a luta,
2-Permite que ora exista um, ora exista o seu contrário,
3-Limita a existência de cada um dos contrários, pondo fim no predomínio de um em favor de outro e vice-versa.
Torna-se claro que todas coisas existentes derivam da referida luta ou constituem-se através dela e estão sujeitas ao nascimento e ao desaparecimento, por força dos contrários que nelas existem.
A coisa assim gerada é limitada, limitada quanto ao seu tempo de existir, quanto ao lugar que ocupa no universo a que pertence e quanto ao espaço que lhe é reservado, o que permite que seja determinada.
Da transformação de cada coisa no seu contrário, isto é, da mudança entre pares de opostos da realidade, é que se pode perceber que elas estão imersas numa espécie de turbilhão infinito, ilimitado, indeterminado.
O apeiron é a Lei da Necessidade:

É por necessidade que nele se verifica, permanentemente, a geração (génese, nascimento, criação) e a corrupção (transformação, declínio, decadência, destruição) das coisas que existem. Geração e corrupção que ocorrem por ciclos desde tempos infinitos. 

Metafísica de Anaximandro - MD - Momento 91

Fonte dos contrários

- Afirmou-se que ele ao prestar atenção à natureza verificava que tudo o que nela se manifestava o fazia de forma dual. Provavelmente, ele deve ter pensado que o mundo é constituído de contrários (opostos, elementos antagónicos), que tendem a predominar uns sobre os outros.
Pelo que a doxografia nos concede, para Anaximandro o apeiron seria um todo metafísico, ao qual não se pode atribuir características ou qualidades conforme se considera relativamente às coisas existentes na natureza e que também proliferam pelo universo, sendo de notar que é sem limites. Ele contém em si todos os contrários, e manifesta-se no mundo empírico através dos contrários existentes nos elementos e nas coisas.

-Sustenta-se por um equilíbrio de poderes (forças).

A fonte e a manutenção da mobilidade
-É móvel, está em movimento permanente, nele o movimento é eterno, infinito e cíclico, ele é a origem e o garante da mobilidade universal. É uma fonte inesgotável de “energia” e movimento, o qual eternamente faz surgir e desaparecer todas as outras coisas que existem passíveis de se deslocarem e eternamente faz surgir e desaparecer infinitos mundos ou universos (kósmos) com seus fenómenos e contrários. Por influência deste movimento, os contrários são separados dele, de molde a formar um Kósmo (universo), daí se dizer que dele provêm os céus e os mundos neles contidos. Kósmo que se estrutura na unidade e na multiplicidade.
*Matéria em movimento perpéctuo
Lei ou Regra de Retribuição entre Opostos:
-Origina, envolve e dirige mundos inumeráveis. Governa cada um deles através da sua organização inicial e segundo a regra contínua de mudança: a lei da retribuição entre opostos. E, aqui será de lembrar que, por exemplo, o frio e o quente existiam juntos no apeiron, por sua iniciativa abre-se um universo, a partir do momento em que ele concede a estes opostos (e a outros) a possibilidade de vaguearem (manifestarem-se por meio do movimento) por esse novo mundo, após a sua cisão.
Eterno
-É Eterno.
O uno não surgiu nunca, é algo insurgido, não tem origem, não tem princípio, é origem de si mesmo, origem sem origem, é o autor das outras coisas. Em si mesmo não nasce, nem envelhece, é sempre jovem, existe eternamente, também não tem fim, não morre, é imperecível. Não pode ter princípio, dado que não tem fim.
Imortal
-É imortal.
A imortalidade é lhe atribuída não é só por não ter fim, como também por não ter começo.
Indestrutível
-Só o apeiron se pode considerar indestrutível, indivisível, incorruptível (não está sujeito à corrupção).
Divino
-É divino.
Como é imortal e indestrutível, então assume a condição de divino.
Anaximandro atribui ao seu princípio a imortalidade, uma das prerro­gativas que Homero e a tradição antiga atribuíam aos deuses. Os deuses nasciam num determinado momento, apenas existiam e não tinham fim, detinham o poder de sustentar e governar tudo. Mas, Anaximandro não se fica por isto, precisa que a imortalidade do princípio tem que ser tal que não admite começo, nem fim.
Em face de tal, Anaximandro derruba a base sobre a qual se erguiam as teogonias (genealogias dos deuses gregos, entendidos na mitologia grega tradicional), ou seja, propõe a destruição da crença grega nos seus deuses. Abre-se a possibilidade dos deuses não serem mais os criadores da realidade e propõe uma nova forma de pensar assente numa base mais racional, sem tantas alegorias.

A ideia da justiça equilibradora que admite uma culpa original e a consequente expiação é uma ideia central do Orfismo. Anaximandro na sua concepção dá-nos a entender que subscreve tal ideia pela infiltração notada desse tipo de concepção religiosa.